Existe no Homem um Princípio Espiritual?
A reflexão sobre a presença de um princípio espiritual no ser humano transcende a mera crença religiosa, configurando-se como uma hipótese ontológica, filosófica e clínica com grande poder explicativo. A negação do espírito implica uma amputação da complexidade humana, reduzindo a consciência a um mero epifenômeno material.
Introdução
A questão da existência de um princípio espiritual no ser humano é uma indagação que perpassa toda a história do pensamento ocidental. Desde os filósofos gregos até as tradições religiosas e os avanços da ciência moderna, essa indagação é central para compreender a natureza humana, suas enfermidades e seu destino. Na obra “A Loucura sob Novo Prisma”, Adolfo Bezerra de Menezes propõe uma leitura ousada e profunda, reinterpretando a loucura sob a ótica espírita e denunciando os limites do reducionismo materialista na medicina mental. Este artigo analisa os fundamentos espirituais da consciência humana, explorando dimensões ontológicas, clínicas e doutrinárias do ser à luz do pensamento espírita e da filosofia da mente.
A Ontologia do Espírito: Entre a Filosofia e a Revelação
A pergunta “existe no homem um princípio espiritual?” é, antes de tudo, uma indagação ontológica. O que é o ser humano em sua essência? Para os antigos filósofos, como Platão, o corpo era apenas uma prisão temporária da alma, cuja origem transcendia o mundo sensível. Aristóteles, embora mais imanentista, reconhecia a alma como princípio de vida e intelecção. No pensamento moderno, René Descartes divide substancialmente o ser em duas naturezas: a res extensa (corpo) e a res cogitans (mente ou alma). A subjetividade consciente, portanto, é irredutível à matéria. Mesmo com as críticas ao dualismo cartesiano, a experiência direta do pensamento e da consciência aponta para algo que não se limita à estrutura cerebral. O Espiritismo sintetiza essas tradições ao afirmar que o espírito é o princípio inteligente do ser humano, anterior e superior ao corpo físico. Bezerra de Menezes apoia-se nessa concepção, afirmando que a inteligência humana não pode emergir espontaneamente da matéria, sendo o espírito a sede da razão, da moral e da identidade pessoal.
Ciência, Espiritualismo e Evidências Empíricas
Bezerra dialoga com importantes pesquisadores espiritualistas do século XIX, como William Crookes, um respeitado físico britânico que conduziu experimentos com médiuns sob rigorosas condições, concluindo que a inteligência manifestada nos fenômenos era de origem extrafísica. Cesare Lombroso, inicialmente cético, rendeu-se às evidências após observar manifestações mediúnicas. Esses relatos, longe de serem meras anedotas, foram documentados e constituíram um movimento real de interseção entre ciência e espiritualidade. Embora a ciência contemporânea muitas vezes descarte essas experiências por não se adequarem aos seus paradigmas naturalistas, elas continuam a ser uma provocação epistemológica diante da complexidade da consciência. O Espiritismo não nega a ciência; ao contrário, amplia suas perspectivas. Kardec observa que “o Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos e de suas relações com o mundo corporal”.
Loucura, Psiquiatria e o Reducionismo Materialista
Bezerra denuncia o erro metodológico de confundir o cérebro com a mente. Embora o cérebro seja o órgão de manifestação da consciência, ele não a produz. Quando os médicos da época diagnosticavam a loucura exclusivamente como lesão cerebral, desconsideravam a possibilidade de que distúrbios psíquicos pudessem ter origem espiritual, moral ou obsessiva. Essa crítica permanece atual, já que a psiquiatria contemporânea, em muitos casos, continua a tratar os transtornos mentais com base quase exclusiva em fármacos e modelos neuroquímicos, ignorando a subjetividade do paciente e sua dimensão espiritual. Isso frequentemente resulta em um tratamento sintomático e não transformador. Bezerra distingue entre loucura por perturbação cerebral e loucura moral — esta última relacionada a paixões desenfreadas, desequilíbrios do caráter e influências espirituais obsessivas.
A Obsessão como Etiologia Espiritual do Sofrimento Psíquico
No contexto espírita, a obsessão é uma das causas principais de perturbações mentais. Refere-se à influência persistente de um espírito desencarnado sobre um encarnado, podendo gerar desde ideias fixas até desorganizações mais graves da consciência. Kardec define obsessão como “o domínio que alguns Espíritos podem adquirir sobre certas pessoas. Jamais se dá sem o concurso da vontade, seja por fraqueza moral, seja por desejo do mal”. Bezerra compreende que muitos pacientes considerados “loucos” pela medicina materialista estão, na verdade, sob ação obsessiva, em um intercâmbio real e patológico entre o desencarnado e o encarnado.
Perispírito e Terapêutica Integral
O perispírito, entendido como o corpo semimaterial que liga o espírito ao corpo físico, desempenha um papel central nesse processo. Lesões e impressões perispirituais podem repercutir no corpo físico ou gerar distúrbios funcionais sem causa anatômica visível. Portanto, tratar o corpo sem considerar o espírito e seu envoltório intermediário é tratar apenas metade da doença. Bezerra defende uma terapêutica integral que inclui: preces e passes magnéticos, transformação moral, desobsessão, acompanhamento médico quando necessário, e apoio fraterno e escuta compassiva. Esse modelo biopsicoespiritual pode ser descrito como uma medicina da alma, restaurando não apenas o equilíbrio neuroquímico, mas também o sentido da existência.
Conclusão
A existência de um princípio espiritual no homem não é uma mera crença religiosa, mas uma hipótese ontológica, filosófica e clínica que possui grande poder explicativo. A negação do espírito é uma redução da complexidade humana, limitando a consciência a um epifenômeno material. Bezerra de Menezes nos mostra que é possível articular ciência e espiritualidade sem dogmatismos. Ao resgatar a dimensão espiritual do ser humano, especialmente no campo da saúde mental, abrimos caminho para um cuidado mais profundo, humano e libertador. Que essa visão mais ampla do homem — corpo, mente e espírito — inspire não apenas médicos, mas todos aqueles comprometidos com o bem-estar integral do ser.
Fontes
- Crookes, W. (1990). “Fatos Espíritas”. São Paulo: LAKE.
- Delanne, G. (2009). “O Espiritismo Perante a Ciência”. Rio de Janeiro: Editora do Conhecimento.
- Descartes, R. (2016). “Meditações Metafísicas”. São Paulo: Ed. Martins Fontes.
- Kardec, A. (1998). “O livro dos Médiuns”: Guia dos médiuns e dos evocadores. Trad. José Herculano Pires. 20. ed. São Paulo: LAKE.
- Kardec, A. (2004). “O livro dos Espíritos”. Trad. José Herculano Pires. 64. ed. São Paulo: LAKE.
- Lombroso, C. (1999). “Hipnotismo e Espiritismo”. São Paulo: LAKE.
- Menezes, A. B. (2009) “A Loucura sob Novo Prisma”. 14. ed. Rio de Janeiro: FEB.
- Moreira-Almeida, A.; Stroppa, A. L. P. (2012). Espiritualidade e saúde mental: o que as evidências mostram?. “Debates em Psiquiatria”, 6(2): 34-41.