Não Trocar o Certo pelo Duvidoso: Prudência ou Medo?

Não trocar o certo pelo duvidoso: Prudência, Medo ou Conservadorismo?

A espiritualidade madura não se reduz a conservar ou arriscar, mas a buscar a verdade com coragem e humildade. É importante reconhecer que toda certeza de hoje já foi, um dia, um duvidoso de ontem.

A expressão “não trocar o certo pelo duvidoso” é uma máxima popular que carrega tanto sabedoria prática quanto armadilhas conceituais. À primeira vista, parece um conselho prudente; no entanto, ao ser examinada mais profundamente, revela-se uma fórmula de duplo sentido, utilizada ora como guia de cautela, ora como justificativa que oculta o medo de arriscar. É nesse ponto que o conservadorismo — tanto pessoal quanto coletivo — encontra um dos seus instrumentos mais sutis para perpetuação.

O Sentido Literal e a Sabedoria Prática

No plano imediato, a expressão aconselha a não trocar uma situação estável por outra incerta. Este é um princípio de prudência e gestão de risco que remete à noção clássica de phronesis (sabedoria prática), descrita por Aristóteles em sua obra . Aqui, a virtude reside em deliberar corretamente diante da incerteza. Por exemplo, um profissional que recusa uma proposta de emprego em uma empresa instável para permanecer em seu cargo seguro está, de certa forma, aplicando essa prudência aristotélica. O “certo” garante continuidade, enquanto o “duvidoso” ameaça o equilíbrio conquistado.

A Ambiguidade: Estabilidade ou Estagnação?

Entretanto, o problema é que o “certo” e o “duvidoso” são construções sociais e subjetivas. O que hoje parece sólido pode se tornar obsoleto amanhã. Como nos lembra Zygmunt Bauman em Modernidade Líquida, vivemos em uma sociedade onde nada permanece fixo, e a estabilidade muitas vezes é uma ilusão. Por outro lado, o “duvidoso” pode conter a potência do novo, aquilo que Thomas Kuhn chamou de “anomalia” em A Estrutura das Revoluções Científicas, capaz de abrir espaço para mudanças de paradigma. Assim, a mesma expressão pode tanto resguardar contra escolhas imprudentes quanto servir de pretexto para o imobilismo.

A Camada Psicológica: Medo e Autoengano

Em muitos casos, essa máxima funciona como uma racionalização do medo. Sigmund Freud já demonstrava que a resistência à mudança frequentemente se disfarça de justificativa racional. Erich Fromm, em O Medo à Liberdade, vai além, afirmando que o indivíduo prefere a segurança da submissão e da conformidade à angústia de assumir a responsabilidade pela própria vida. O “não trocar o certo pelo duvidoso” pode ser, nesse sentido, uma forma de permanecer na zona de conforto, conceito que a psicologia contemporânea descreve como o espaço psíquico em que a familiaridade prevalece sobre o crescimento.

O Conservadorismo e a Manutenção do Poder

No campo social, a expressão atua como um mecanismo de defesa do status quo. Pierre Bourdieu mostrou em A Reprodução como as estruturas de poder se legitimam por meio de discursos que naturalizam a ordem vigente, travestindo-a de “bom senso”. Qualquer proposta de inovação pode ser desacreditada como “duvidosa”, enquanto a manutenção do estabelecido é apresentada como prudência universal. Antonio Gramsci, em seus Cadernos do Cárcere, já advertia que o “senso comum” é frequentemente a ideologia dos dominantes naturalizada na fala popular. O “duvidoso” de ontem — a democracia, o voto feminino, a internet — tornou-se o “certo” de hoje, mas quando surgiram, foram tratados como apostas irresponsáveis.

O Dilema Espiritual: Fé Estabilizada ou Busca Autônoma?

Esse dilema ganha densidade existencial no plano religioso. Trocar uma crença estabilizada por outra racionalmente atraente — como a proposta kardecista diante das tradições cristãs — é mais que um exercício lógico: é uma crise de sentido. William James, em As Variedades da Experiência Religiosa, mostrou que a religião funciona como matriz de orientação vital, e abandonar essa matriz implica um verdadeiro abalo da psique. Peter Berger, em O Dossel Sagrado, explica que a religião estabiliza o mundo social, oferecendo um “certo” contra o caos existencial.

O Espiritismo de Allan Kardec aparece, nesse contexto, como uma alternativa racional e investigativa — um “duvidoso” atraente porque oferece respostas lógicas a questões que a fé tradicional trata como mistério. No entanto, adotar essa via implica enfrentar o custo da autonomia espiritual. José Herculano Pires, em Educação para a Morte, enfatiza que o Espiritismo exige do indivíduo uma postura ativa, sem muletas dogmáticas, o que representa um grande desafio.

Entre Simplificação e Complexidade

Seria simplista concluir que apenas os “corajosos” buscam autonomia enquanto a maioria se refugia no medo. A realidade é mais matizada. Para milhões de fiéis, a experiência comunitária não é uma muleta, mas uma comunhão vivificante. Para outros, a autonomia não é sempre libertação, podendo ser isolamento ou orgulho intelectual. Charles Taylor, em Uma Era Secular, analisa essa tensão: enquanto alguns buscam a fé como pertencimento comunitário, outros desejam uma espiritualidade mais individualizada. Ambas as opções respondem de maneira legítima ao mistério da condição humana.

Conclusão: O Equilíbrio da Escolha

A força da expressão “não trocar o certo pelo duvidoso” reside em sua ambiguidade. Pode representar prudência aristotélica, medo freudiano ou estratégia conservadora bourdieusiana. No campo espiritual, representa o dilema entre o porto seguro da tradição e o mar aberto da busca autônoma. Nenhum desses caminhos é intrinsecamente superior. O verdadeiro risco reside em viver sem consciência crítica — seja permanecendo no “certo” por medo, seja abraçando o “duvidoso” por mera rebeldia. O essencial é discernir quando o “certo” deixou de alimentar a alma e quando o “duvidoso” deixou de ser apenas incerteza para se tornar uma possibilidade de sentido. Em última instância, a espiritualidade madura não se reduz a conservar ou arriscar, mas a buscar a verdade com coragem e humildade, reconhecendo que toda certeza de hoje já foi, um dia, um duvidoso de ontem.

Fontes: ARISTÓTELES. (1973). “Ética a Nicômaco”. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural. BAUMAN, Z. (2001). “Modernidade líquida”. Rio de Janeiro: Zahar. BERGER, P. L. (1985). “O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião”. São Paulo: Paulus. BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C. (1975). “A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino”. Rio de Janeiro: Francisco Alves. FREUD, S. (1976). “Inibições, sintomas e ansiedade”. Rio de Janeiro: Imago. FROMM, E. (1983). “O medo à liberdade”. Rio de Janeiro: Zahar. GRAMSCI, A. (1999). “Cadernos do cárcere”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. JAMES, W. (2002). “As variedades da experiência religiosa”. São Paulo: Cultrix. KUHN, T. S. (2013). “A estrutura das revoluções científicas”. 10. ed. São Paulo: Perspectiva. PIRES, J. H. (1971). “Educação para a morte”. São Paulo: Paidéia. TAYLOR, C. (2010). “Uma era secular”. São Leopoldo: Unisinos. WHITE, A. (2009). “From comfort zone to performance management”. Hoeilaart: White & MacLean Publishing.

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